No mercado global de títulos, estimado em US$ 150 trilhões, investidores começam a enxergar em algumas corporações menos risco do que em governos de economias avançadas. Papéis emitidos por Microsoft, Airbus, L’Oréal e Siemens já são negociados com cupons inferiores aos dos títulos soberanos de Estados Unidos, França e Alemanha.
Desde o início da pandemia, grandes companhias adotaram cortes de custos e reduziram endividamento, enquanto governos ampliaram gastos para sustentar a atividade. A relação dívida/PIB média do G7 deve continuar subindo até 2030, segundo projeções do FMI.
Pilar Gomez-Bravo, diretora de investimentos da MFS International, que administra cerca de US$ 660 bilhões, observa uma “mudança estrutural”: investidores passaram a preferir balanços corporativos ao perfil fiscal de vários países.
A França não consegue conter déficits, e analistas veem o desequilíbrio acima de 5% do PIB em 2026. Nos Estados Unidos, o Escritório Orçamentário do Congresso calcula que cortes de impostos aprovados este ano acrescentarão US$ 3,4 trilhões aos déficits na próxima década. A Alemanha vem driblando suas próprias regras fiscais para ampliar gastos com defesa e infraestrutura.
“Governo gasta para se reeleger; empresa gasta para aumentar lucro”, resume Hans Mikkelsen, estrategista do TD Securities.
Entre cerca de 2.500 companhias do índice MSCI ACWI, a alavancagem (dívida líquida/Ebitda) caiu para 1,74 vez no primeiro semestre, menor nível desde a crise de 2008. Há dez anos, a média era 2,53 vezes.
A Microsoft, avaliada em quase US$ 4 trilhões e com rating AAA, tem dívida líquida equivalente a um décimo do lucro dos últimos 12 meses. Na França, a operadora Orange é citada como caso clássico de desalavancagem e já paga juros menores que o Tesouro francês; cerca de 5% dos títulos corporativos de grau de investimento no país oferecem rendimento inferior ao soberano.
Imagem: infomoney.com.br
O spread médio exigido para títulos corporativos globais de grau de investimento caiu em outubro ao menor patamar desde 2007, mostra índice Bloomberg. A força da procura foi evidente nas emissões recentes de Meta e Alphabet:
Mesmo com receios sobre o volume de investimentos em inteligência artificial, as duas operações foram precificadas abaixo dos spreads médios de empresas com ratings semelhantes.
A liquidez dos títulos corporativos é menor que a dos soberanos, e prazos mais longos ainda embutem prêmios maiores, indicando que a confiança das gestoras pode diminuir no futuro. Além disso, governos contam com o poder de tributar — vantagem ressaltada por estrategistas como Mathieu Savary, da BCA Research.
Ainda assim, gestores como Steffen Ullmann, da HAGIM, veem a percepção de risco soberano subir enquanto as companhias mantêm disciplina financeira. “As empresas fizeram sua parte”, afirma.
Com a escalada do endividamento público e restrições políticas a ajustes fiscais, analistas do Bank of America avaliam que o mercado “cruzou o Rubicão” ao aceitar que certas corporações se tornaram, no momento, credores mais seguros que alguns dos governos mais poderosos do mundo.