Uma alteração nas regras de débito automático implementada pelo Banco Central em 2021 permitiu que empresas financeiras vinculadas a seguradoras e clubes de benefícios realizassem milhares de cobranças sem autorização nas contas de aposentados do INSS.
Até 2021, os bancos só podiam inscrever um débito automático após consentimento do cliente. A partir da resolução 4.790, assinada na gestão de Roberto Campos Neto, essa exigência deixou de valer quando a ordem de cobrança parte de outra instituição financeira autorizada pelo BC.
A justificativa oficial era reduzir fraudes, mas a medida acabou enfraquecendo o processo de checagem e abriu caminho para débitos em massa, principalmente contra idosos de baixa renda e baixa escolaridade que vivem no interior do país.
Investigação mostra que uma seguradora e dois clubes de benefícios passaram a usar financeiras de pequeno porte, controladas pelos mesmos grupos, para enviar as ordens de débito. Quando esses pedidos chegam ao banco, na maioria dos casos não há verificação com o correntista.
Os bancos cobram das financeiras até R$ 11 por transação. Se uma financeira debita R$ 50 mensais de 100 mil aposentados, pode movimentar R$ 60 milhões por ano, dos quais até R$ 13,2 milhões ficam com o banco em tarifas.
Aspecir: usa a financeira Aspecir para debitar valores destinados à União Seguradora, que pertence aos mesmos sócios.
Eagle: emprega a financeira Eagle para descontar valores da Verbin Seguros, também conhecida como Clube Conectar, administrada por sócios da própria financeira.
Sudacred: realiza débitos para o clube de benefícios Sudaclube; o Tribunal de Justiça de São Paulo aponta que operam no mesmo grupo econômico.
Levantamento da plataforma Escavador aponta 67 mil ações contra esses três grupos na última década. O salto coincidiu com a mudança regulatória: de 1.400 processos em 2020 para 31.700 em 2024—crescimento superior a 20 vezes.
Em setembro de 2023, Sudacred e Sudaclube foram condenadas a pagar R$ 1,5 milhão por danos morais coletivos em Santa Fé do Sul (SP). Segundo o Conselho Nacional de Justiça, as empresas respondem em 25 das 27 unidades federativas.
Imagem: redir.folha.com.br
A arrecadação da União Seguradora subiu de R$ 50 milhões em 2021 para R$ 198 milhões em 2024, enquanto o pagamento de sinistros caiu de R$ 31 milhões para R$ 13 milhões. Em 11 estados, que concentraram um quarto das receitas de 2024, não foi registrado nenhum sinistro pago.
Dos sete bancos com mais contas de beneficiários do INSS, o Bradesco é o mais acionado na Justiça: responde por 80% dos casos em que instituições financeiras são citadas junto com os grupos acima. Em seguida aparecem Itaú, Caixa, Banco do Brasil e Santander.
Mercantil e Bancoob não tiveram processos identificados. O Mercantil afirma manter a exigência de autorização prévia, mesmo após a mudança do BC. O Bancoob diz não ter convênio de débito automático com as empresas investigadas.
A Febraban alega que a norma impede os bancos de solicitar autorização do correntista quando a cobrança vem de outra financeira. O Banco Central, porém, informou em nota que as instituições “não estão proibidas” de adotar controles adicionais.
Questionado sobre fiscalização, o BC declarou que não comenta ações de supervisão específicas. Os bancos afirmam notificar clientes sobre novos débitos e oferecer cancelamento. Especialistas em finanças criticam o monitoramento bancário e sustentam que, diante das reclamações, os convênios com as financeiras deveriam ter sido suspensos.
Nas ações judiciais, bancos costumam alegar que são apenas intermediários de pagamento, mas a Justiça frequentemente os condena a restituir valores e pagar indenização com base em súmula do Superior Tribunal de Justiça que responsabiliza instituições financeiras por fraudes em operações bancárias.
As empresas Aspecir e União Seguradora não responderam aos contatos desde 10 de julho. Eagle e Verbin Seguros dizem não vender diretamente os produtos cobrados dos aposentados. Sudacred e Sudaclube afirmam que suas vendas têm origem legítima e que há confirmação de aceite pelos clientes.
A alteração regulatória segue em vigor.